quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A primeira grande queda

I thought you'd always be mine...

 Dificilmente alguém que retorne nos anos encontrará hoje algo da vida adulta projetada na infância. Nossos primeiros anos não se ocuparam apenas em viver as fases típicas de cada idade, mas também em organizar mentalmente a vida futura. Espera-se com ansiedade a profissão escolhida que, aliada a um casamento duradouro, trará a cada um a felicidade constante.
  Entre a prosperidade aguardada e o que nos tornamos, houveram certamente aprendizagens a nos mostrar como a vida idealizada se choca, e muitas vezes não cabe na realidade - exatamente como naqueles deveres de redação da escola, perfeitas em nossas cabeças, até a escrita da primeira frase.
  Gosto de pensar em Baby como uma música sobre a primeira grande queda, a entrada na vida adulta, ou o contato inicial com um mundo que escapará sempre às nossas mãos.

A estrofe inicial mostra o ideal de infância ainda vivo.

"You know you love me, I know you care
Just shout whenever, and I'll be there
You want my love, you want my heart
and we will never ever ever be apart"


  A primeira namorada, aquela com quem ele passará a vida, aparece envolvida pela confiança da durabilidade da união, algo frustrado por um"We're just friends". Não deixa de ser comovente como a linguagem de reação ainda é infantil, despreparada para a situação:


I'm in pieces, baby fix me, 
And just shake me till you wake me from this bad dream

É um abismo que se abre (I'm going down, down, down): o mundo não cabe em projetos, muito menos em intenções de corrigir possíveis falhas. O namorado julgava possuir completo controle para contornar qualquer impasse. E no entanto, não há nada o que se possa fazer, nada além de um profundo "no"...



sexta-feira, 20 de abril de 2012



Nem acho que a palavra do criador seja tão importante para entender sua obra, mas morri de amores agora vendo o que a Björk falou sobre o "all is full of love". É bem o que eu prego sobre a música, inclusive a inspiração na natureza:

"I guess waking up after having been in Spain for six months in the mountains...with few people. It was kind of solitary. And it was April, and I had to walk in the morning...around the mountains. And spring just kicked in. It was definitely nature-inspired."

"That song's from a moment when I'd had a pretty rough winter and then it was a spring morning and I walked outside and the birds were singing: Spring is here! I wrote the song and recorded in half a day. It just clicked - you know: you're being too stubborn, don't be so silly, there is love everywhere. The feeling, the emotion of the song was like completely melting and loving everything and feeling like everything loved you, after a long time of not having that. The song, in essence, is actually about believing in love. Love isn't just about two persons, it's everywhere around you."

terça-feira, 3 de abril de 2012

Faces do amor-cosmos segundo Björk


Até onde sei (posso estar errado, obviamente), Björk representa um caso único na música pop. Não que o tema seja novidade para a pintura, poesia, filosofia e cinema, mas, em sua área, a cantora parece se engajar sozinha num difícil e essencial esforço: abrir possibilidades de expandir a experiência humana. Mesmo não vendo isso pejorativamente, há uma muito sedimentada associação na cultura popular da música como instrumento de expressão – seja pessoal ou coletiva (canções de amor, protesto, religiosas, etc).
Poderíamos nos perguntar: mas como seria possível atingir algo além do humano? E para que? O poeta Francis Ponge construiu toda a sua poesia em cima deste questionamento. Sua obra se volta para aquilo que não é humano, mas, no entanto, nos cerca: flores, insetos, a água, etc. Aprendemos com a poesia de Ponge, no entanto, que uma total saída do humano seria uma ilusão, mas aproximações são possíveis. O humilde esforço de alguém consciente de suas limitações significa alcançar o que é estranho ao nosso entendimento e, não apenas conhecê-lo, mas apreender diferentes maneiras de ver o mundo e mesmo de viver.  A dimensão estética se torna assim uma atividade de conhecimento e  ética.
Chegar perto da natureza e atividade dos cristais. Assim se coloca a proposta de Björk em Crystilline. 
A música possui dois pólos nitidamente contrastantes: algo como uma serenidade inicial, estranhamente finalizada na violência energética de uma batida drum n' bass. Há algo que explique este momento inicial – significa a abertura ao mundo, o que requer humildade e um olhar sereno para as coisas. Assim, o que vemos de início é a atitude de alguém atento às manifestações da natureza:

Underneath our feet
Crystals grow like plants
Listen how they grow

Esta atitude de abertura ao mundo está explicitada desde All is Full of Love, em que a cantora encontra um amor cósmico vibrando em todas as coisas. Há algo em Crystilline, no entanto, que dá um passo além deste contato com o mundo. A artista quer não apenas ser afetada por esta energia, como alcançá-la em seu fluxo. To reach love - este verso da composição desvenda o seu movimento.
Deste modo, à escuta atenta às vibrações da natureza se contrapõe o desejo de torná-las palpáveis. É aí que entra a atividade do artista-músico, papel assumido por Björk: captar a energia pulsante dos cristais, materializar sua mudez em sons. 
Mas por que o caminho para isto insiste em “conquer claustrophobia”? Porque a tentação de um antropomorfismo deve ser superado. Um ser humano pode sentir um incômodo ao imaginar algo ativo nas entranhas da terra. No entanto, para o cristal, este é o seu campo de atividade, o seu habitat.
A força de tal empenho finaliza-se no maravilhoso verso final, em que vemos justificada o contraste com o restante da peça:

It's the sparkle you become
When you conquer anxiety

Há uma violência pulsante na conclusão, pois o que Björk encontra não é apenas a beleza dos cristais, mas o seu núcleo, essência ou verdade. A composição, iniciada por um espectador frente a estes minerais - "listen how they grow" -, termina como que do outro lado, operando a recriação deste som. Atingir o coração da atividade dos cristais significa não apenas possuir dele uma experiência estética, mas, em certa medida, transmutar-se nele por um instante, englobar em nossa dimensão humana sua energia criadora. It's a sparkle you become


quinta-feira, 22 de março de 2012

Uma revelação

É curioso quando algo tomado por conhecido e inteiramente apreciado revela uma nova dimensão, ainda desconhecida de nós. Tive uma revelação desse tipo ao assistir "Pina" ontem. Há um bom tempo sou  fã de Stravinsky. Tenho sua obra quase completa e gosto de praticamente tudo. Mas tive o privilégio de adotar uma nova perspectiva sobre "Sagração da Primavera", sua obra mais conhecida. Fico agora pensando o quanto ela é importante para a escuta da obra. Aliás, o que me impedia de enxergar esta nova dimensão foi justamente experienciar a "Sagração" como escuta pura, não me dando conta do quanto ela é corpo. 
  A chamada música erudita ocidental foi concebida durante um bom período como uma aventura puramente intelectual, ou do espírito. Obviamente há exemplos que provam o contrário, e, inclusive, músicas feitas para a dança. Mas se nos voltarmos ao balé clássico (sem querer desmerecê-lo, naturalmente, mas apenas apontar uma diferença), suponho haver em sua estrutura algo estranhamente mais próximo da escuta pura do que do corpo. Parece que o principal esforço da dança clássica é justamente o de operar uma afirmação do espírito sobre o corpo. O que seriam os inumanos esforços de vitória sobre a gravidade do que uma tentativa de espiritualizar o corpo, torná-lo leve, livre de sua massa material? 
 "Sagração da Primavera", foi o que me dei conta ontem, realiza justamente o contrário. A coreografia de Pina Bausch me revelou o quanto a composição de Stravinsky afirma o peso e a força do corpo. Os saltos não tentam oferecer a impressão de leveza, mas afirmam incessantemente a gravidade. Não é à toa que a coreografia é mais tribal do que "européia" - esta afirmação do corpo é feita de maneira escandalosa, bruta. Assistindo à coreografia me lembrei na hora do famoso quadro de Picasso, que acho que afirma algo parecido. 

Abaixo vão trechos de duas coreografias diferentes para "Sagração", uma delas feitas na própria época de lançamento. 






sábado, 28 de janeiro de 2012

Duas fenomenologias do tempo

É curioso notar como um fato inédito na discografia de Madonna se sucede em dois álbuns, o primeiro em Confessions on a dance floor, Hung up, o segundo em Hard Candy e a faixa 4 minutes. Se tomarmos o conceito mais genérico de fenomenologia – o de descrição dos fenômenos, tal como vividos ou experienciados-, podemos enxergar nestas faixas dois interessantes retratos sobre a experiência humana com o tempo.


Hung up não faz rodeios sobre qual seria este retrato. A primeira frase da música vai logo ao ponto: Time goes by so slowly for those who wait. Pode parecer uma situação banal uma música sobre uma ligação de telefone que não chega, mas a descrição desta experiência é bastante exata. Aqueles que esperam são tomados por uma cruel deformação, aquele que multiplica o tempo da espera. Uma hora parece uma eternidade. Numa das passagens mais marcantes do belíssimo Sermão de Nossa Senhora do Ó, Antônio Vieira dá conta deste fenômeno ao refletir sobre as semelhanças entre a eternidade e o desejo. O sermonista afirma assim que “só um dia de ardente e ansioso desejo é igual a todo o tempo que se pode estender a vida humana”. A letra diz ainda que, diante desta espera, “I don't know what to do”, pois este tempo nos paralisa. Apesar disto, a motivação da música é uma tentativa de sair deste estado, se libertar dessas amarras. O que é de certa maneira trágico é que uma decisão racional não necessariamente recoloca o tempo nos eixos.


4 minutes vai em sentido oposto ao de Hung up. Agora não se trata mais do tempo dilatado, e sim de sua desesperadora aceleração. A situação igualmente parece banal, mas descreve um sentimento pelo qual todos já passamos – se interessar por um desconhecido/a e se declarar. Ao passo que Hips don't lie nos parecia uma semiologia da paquera, 4 minutes poderia ser descrita como sua fenomenologia. O principal inimigo da paquera é sem dúvida o tempo, porque ele passa, nos escorrega. Parece que temos de antemão esse tempo nas mãos “eu tenho essa noite pra me declarar”, assim como a música tem o tempo nas mãos “eu tenho 4 minutos” - o tempo de duração da faixa. Caso isto não se cumpra, meu mundo vai acabar, como a música pontua: We only got 4 minutes to save the world. É assim que nos sentimos quando falhamos na comunicação.

Em ambas as faixas, por fim, vemos algo em comum: o compasso da música pontuado pelo tempo cronológico, cujos sons de tic tac do relógio inclusive aparecem. No entanto, estas marcações referentes a momentos exatos e homogêneos do relógio são deformados – distendidas ou condensadas – em favor do retrado de sua experiência concreta.




domingo, 8 de janeiro de 2012

"O eu e o tempo"

O Calvin parece saber e curtir uma das magias do dia a dia. A cada elemento novo que experienciamos somos outro.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Uma ode ao mensageiro




Enter Messenger.
LADY MACBETH          
What is your tidings?
     Messenger 
  
 The king comes here to-night.
     LADY MACBETH 
    
   Thou'rt mad to say it!

Macbeth, parte 1, cena 5


Em uma de minhas passagens preferidas em A condição humana, Hannah Arendt fala sobre a instabilidade e mutabilidade do que denomina “teia de relações humanas”. Isto quer dizer, as relações humanas se tecem não sobre um planejamento calculado e sólido do tipo “ação e seus efeitos”, mas sobre uma extrema imprevisibilidade e fragilidade. A cada ato, a totalidade da trama entretida entre os homens se encontra em jogo. Um novo acontecimento se emite à teia de relações como um lance de dados, cujo efeito é tão imprevisível quanto o seu alcance. Como a própria Hannah Arendt ressalta, “basta um ato e, às vezes, uma palavra, para mudar todo um conjunto”.

Apesar de serem personagens secundários, os mensageiros parecem confirmar um aspecto do conceito de Hannah Arendt. Especialmente no teatro e em textos religiosos, estes personagens surgem com o propósito único de transfigurar ou desarticular as teias de que nos fala a filósofa. Criados, carteiros, ou, na forma religiosa, os anjos, são os modos mais célebres desta figura. Atualmente os meios tecnológicos praticamente aboliram esta figura do cotidiano. Não é um telegrama portado pelo carteiro que avisa sobre um novo anúncio, mas um dos meios de comunicação, especialmente o e-mail ou, mais ainda, o sms. Este último meio combina com a mensagem dos antigos personagens pela breviedade de seu conteúdo. Esta ausência de um mensageiro cria a sensação de uma comunicação direta, sem intermediário, entre as pessoas.

O momento de chegada de um mensageiro é constantemente aquele dos protagonistas ocupados com o cotidiano, ou seja, engajados em certa configuração estabelecida. Virgem Maria lia quando se depara com a chegada do arcanjo Gabriel. O simples fato deste anúncio dá início à toda a saga do novo testamento, pois comunica algo novo inserido nas relações humanas. O anjo Gabriel revela ainda a causa de ser do mensageiro. Tais personagens não expressam nada de si, pois não estão comprometidos com aquela ordem de ações. No entanto, sua virtude consiste na capacidade conferida a eles de transitar entre dois cenário incomunicáveis.


A forma mais perfeita da comunicação que trazem é uma simples frase, um telegrama ou bilhete, aquela "uma palavra" capaz de mudar um conjunto. Desta maneira, por não se tratarem propriamente dos autores de uma ação, os mensageiros não se encaixam perfeitamente na descrição de Hannah Arendt. No entanto, parece que tudo a que estes personagens foram destinados é mostrar como um pequeno fragmento de texto ou fala criam ou transfiguram uma teia de relações. A radicalidade com que os acontecimentos se desdobram após sua chegada contrasta com a brevidade de sua aparição. A fala que portam, destituída de qualquer conteúdo próprio, são, no entanto, uma bomba cujo conteúdo implode o que foi, e uma chave para o que passará a ser. É justamente a falta desta chave que torna Romeu e Julieta uma tragédia – uma simples frase “Julieta está viva” teria aberto aos personagens a possibilidade de uma nova vida.