domingo, 30 de outubro de 2011

Uma anunciação "on the dance floor" - Parte 1 de 3: Vogue

 O ponto central do pensamento de Merleau-Ponty é sua tentativa de fazer uma filosofia do corpo. De acordo com sua avaliação, a história da filosofia se encaminhou para uma série de questões logicamente válidas, mas que não tocam no verdadeiro problema. Tal questão seria, para Merleau-Ponty, uma filosofia do mundo vivido. É assim que o filósofo afirma ainda no início da carreira:

O mundo como percebido seria o fundo sempre pressuposto por toda racionalidade, todo valor e toda a existência. Uma concepção deste gênero não destrói nem a racionalidade, nem o absoluto. Busca fazê-los descer à terra.
Merleau-Ponty - O primado da percepção e suas consequências filosóficas

O que esta colocação diz, em outras palavras é: o pensamento filosófico ignora o mundo concreto, e ainda assim, constroi castelos teóricos. Mas já que ignoram o ponto de ancoragem do homem no mundo (o corpo e a perceção), formulam falsos problemas. Merleau-Ponty toma assim como imperativo para a sua filosofia enraizar a reflexão filosófica na experiência concreta, fazer “descer” o pensamento do céu dos pseudo-problemas para um pensamento do corpo.
Apesar desta formulação de Merleau-Ponty se referir ao âmbito da filosofia, sempre liguei ela a uma experiência psicológica de todos nós e que poderia se resolver de maneira parecida. Gosto bastante de pensar que muitos problemas não precisam ser resolvidos, mas sim dissolvidos. Este é um dos interesses maiores do gesto de Merleau-Ponty: se afastar da tradição, não pela tentativa de resolver ou consertar formulações anteriores, mas pela dissolução desses problemas.
Como isto se aproximaria de nosso dia a dia? Ora, quem não se perde em complicações, formulações, desconfianças? O caminho que se busca para isso é o de encontrar soluções, resolver os problemas. Mas e se problemas pudessem deixar de ser problemas, simplesmente se dissolvendo? Tal é a proposta de Vogue.

Look around everywhere you turn is heartache
It's everywhere that you go
You try everything you can to escape
The pain of life that you know

A música abre pela evocação de tudo já foi tentado para solucionar “the pain of life” e a falência dessas tentativas. A busca de uma solução parece perdida, não fosse a intervenção da loira em dizer: há ainda uma chance, em cima da pista de dança. O caminho para esta via já é dado desde os minutos iniciais: strike a pose. Ou seja, não se procura uma formulação ou fala capaz de aliviar o problema. Aliás, que problema enfurnado na cabeça não tende a se tornar pseudo-problema? É preciso se afastar desse embaralhamento de confusões, se fazer corpo:

Let your body move to the music, hey, hey, hey
Come on, vogue
Let your body go with the flow, you know you can do it

A insistência constante da música é mobilização do corpo, dissolver a ordem do pensamento no movimento da dança. A realição deste evento se dá pelas impressionantes palavras – o ponto de tensão máximo da música:

Beauty's where you find it
Not just where you bump and grind it
Soul is in the musical
That's where I feel so beautiful
Magical, life's a ball
So get up on the dance floor

Será que há algo mais dentro da dinâmica intervenção e milagre do que esta música? O que parecia impossível e complicado se realiza na simplicidade de um gesto de intervenção. Se antes havia  heartache e pain of life, há uma transubstanciação em  beautiful, magical. 



2 comentários:

  1. Haha.
    Adorei.
    Mas, seguindo a sua linha de pensamento resta uma dúvida.
    Ok, a saída dos problemas é pelo corpo. Mas a natureza dos problemas evocados pela música não remetem a problemas no âmbito do pensamento exterior ao corpo - pelo contrário, remetem à dor:

    The pain of life that you know

    Não apenas a dor, mas uma dor conhecida. O que há de mais físico do que a dor?
    Nesse sentido a estrutura do milagre na música não se afasta da estrtura proposta no pensamento de merleau ponty?

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  2. Sim, vc tem razão. O contexto da dor é bem amplo, pode ser física ou mental, ou ambas. Mas eu ligo a minha fala mais ao "when all else fails"; algo do tipo, a pessoa já tentou de tudo.
    Mesmo que o ponto de origem seja uma dor física, acho que esse "já ter tentado de tudo" mostra que, como diz a minha mãe, "a crise tá geral". haha
    Acho gostosa essa coisa de dissolver um problema, ainda que temporariamente.

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