sábado, 28 de janeiro de 2012

Duas fenomenologias do tempo

É curioso notar como um fato inédito na discografia de Madonna se sucede em dois álbuns, o primeiro em Confessions on a dance floor, Hung up, o segundo em Hard Candy e a faixa 4 minutes. Se tomarmos o conceito mais genérico de fenomenologia – o de descrição dos fenômenos, tal como vividos ou experienciados-, podemos enxergar nestas faixas dois interessantes retratos sobre a experiência humana com o tempo.


Hung up não faz rodeios sobre qual seria este retrato. A primeira frase da música vai logo ao ponto: Time goes by so slowly for those who wait. Pode parecer uma situação banal uma música sobre uma ligação de telefone que não chega, mas a descrição desta experiência é bastante exata. Aqueles que esperam são tomados por uma cruel deformação, aquele que multiplica o tempo da espera. Uma hora parece uma eternidade. Numa das passagens mais marcantes do belíssimo Sermão de Nossa Senhora do Ó, Antônio Vieira dá conta deste fenômeno ao refletir sobre as semelhanças entre a eternidade e o desejo. O sermonista afirma assim que “só um dia de ardente e ansioso desejo é igual a todo o tempo que se pode estender a vida humana”. A letra diz ainda que, diante desta espera, “I don't know what to do”, pois este tempo nos paralisa. Apesar disto, a motivação da música é uma tentativa de sair deste estado, se libertar dessas amarras. O que é de certa maneira trágico é que uma decisão racional não necessariamente recoloca o tempo nos eixos.


4 minutes vai em sentido oposto ao de Hung up. Agora não se trata mais do tempo dilatado, e sim de sua desesperadora aceleração. A situação igualmente parece banal, mas descreve um sentimento pelo qual todos já passamos – se interessar por um desconhecido/a e se declarar. Ao passo que Hips don't lie nos parecia uma semiologia da paquera, 4 minutes poderia ser descrita como sua fenomenologia. O principal inimigo da paquera é sem dúvida o tempo, porque ele passa, nos escorrega. Parece que temos de antemão esse tempo nas mãos “eu tenho essa noite pra me declarar”, assim como a música tem o tempo nas mãos “eu tenho 4 minutos” - o tempo de duração da faixa. Caso isto não se cumpra, meu mundo vai acabar, como a música pontua: We only got 4 minutes to save the world. É assim que nos sentimos quando falhamos na comunicação.

Em ambas as faixas, por fim, vemos algo em comum: o compasso da música pontuado pelo tempo cronológico, cujos sons de tic tac do relógio inclusive aparecem. No entanto, estas marcações referentes a momentos exatos e homogêneos do relógio são deformados – distendidas ou condensadas – em favor do retrado de sua experiência concreta.




2 comentários:

  1. Esse tema é também tratado no inesquecível Sermão do Mandato, do mesmo Vieira:

    "Não seria Jacó tão celebrada figura de Cristo se também o seu amor não tivesse a propriedade de diminuir o tempo. Mas nesta mesma diminuição é necessário advertir que os anos que a Jacó lhe pareciam poucos dias não foram só sete, senão muitos mais, ou muito maiores. Assim como o gosto faz os dias breves, assim o trabalho os faz longos. [...]
    O tempo fazia os anos, o trabalho multiplicava o tempo, mas o amor de Jacó, maior que o trabalho e maior que o tempo, não só diminuía os anos que fazia o tempo, senão também os que multiplicava o trabalho. Com o gosto de servir diminuía o amor uns anos, com o gosto de padecer diminuía os outros, e por isso, ainda que fossem anos sobre anos, e muitos sobre muitos, todos eles lhe pareciam dias, e poucos dias: Videbantur illi pauci dies."

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  2. Cacildis, essa é uma das minhas partes preferidas de todo o Vieira! Amo a descrição de 3 elementos ativos e simultâneos: o tempo fazendo os anos, trabalho multiplicando, amor dividindo. De tirar o fôlego!

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